2007-10-23

Porreiro, pá?

Depois da rejeição popular, em França e na Holanda, à Constituição, as elites europeias, através de comunicações oficiais pródigas em apelos ao debate e ao aprofundamento democrático, anunciaram o início dum período de reflexão. Esse tempo mais não foi do que o que mediou entre esse primeiro embaraço e o vislumbre de novas possibilidades de derrotar o inimigo e de impor a ordem que tinha sido recusada.

O nome não podia ser o mesmo, o que causava grande incómodo, já que o enorme cuidado colocado no baptismo original, para que o simples nomear deste acordo multilateral fosse, por si só, uma forma de legitimação, tinha sido em vão. Paciência, vai-se o epiteto Constituição, fica o conteúdo e até se ganha o desprendimento desse lastro incómodo que é o da consulta dos imprevisíveis povos europeus.

Sarkozy, um dos que mais necessitava de nova roupagem para a defunta, captou muito bem esta mensagem que Merkl tinha sugerido. Juntos impuseram a sua visão de que bastava um acordo breve que mantivesse a “primazia do direito comunitário” e da sua “economia livre e não falseada”, a “liberalização de capitais e serviços” e os seus efeitos sobre o mundo do trabalho, mas de forma não muito visível. Acrescentando um pouco ao que já existe em termos de tratados multilaterais que vão construindo a União Europeia (UE), tem-se o que se queria ter antes. A presidência portuguesa mais não teria, então, que redigir um mini-tratado que, somado ao emaranhado de tratados já existentes, fosse a redacção fiel do que tinha sido rejeitado. E, temos que reconhecer, Sócrates e os seus estiveram à altura.

A malta é que não gosta que façam de nós parvos, mas isso é coisa de somenos para os que vão cozinhando a forma de o mundo partir e repartir as suas riquezas. Eles gostam de cozinhar sozinhos porque sabem que quem parte e reparte é que escolhe a sua parte. Nem nos ouvem. Só dizem que tratado é tratado e temos que tratar de o cumprir, que assim é que as coisas podem andar para a frente e para a frente é que é o caminho, já lá dizia o outro, nem importa muito quem. E cumpri-lo, caro filho, significa agir de acordo com as normas que impõe. E impõe normas de organização política, de organização económica. Pois é, filho.

É legítimo defender quaisquer princípios de política e de economia. Os do neoliberalismo, por exemplo. Ninguém pode censurar que haja pessoas para quem a organização actual é a mais correcta possível. Que digam que não é bem assim quando a pobreza aumenta, quando a precaridade se generaliza, quando as despesas sociais do Estado diminuem, quando se mercantiliza a vida social. Pensam assim, vá-se lá saber porquê, mas podem fazê-lo, é direito deles pensar pelas suas cabeças e tentar arranjar forma de fazer vingar as suas ideias. Se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém. O problema é que, ao vingarem, vingaram-se de todo o tempo de espera e, através do cumprimento do tratado, impedem que haja outra via para o desenvolvimento económico e social que não seja a de fortalecer os mercados e de privilegiar o investimento e os fluxos de capital privados.

Trazendo a coisa para a mesquinhez da vida real, os eleitores de um país podem votar maioritariamente num candidato com um programa marxista. Pode parecer irrealista, mas é um direito dos eleitores pensarem pelas suas cabeças e tentar arranjar forma de fazer vingar as suas ideias. Se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém. A questão é que o candidato, depois de eleito, não pode aplicar o seu programa. Senão, lá está, viola o tratado e tratado é tratado e temos que tratar de o cumprir, que assim é que as coisas podem andar para a frente e para a frente é que é o caminho, já lá dizia o outro, nem importa muito quem.

A malta é que não gosta que façam de nós parvos, mas isso é coisa de somenos para os que vão cozinhando a forma de o mundo partir e repartir as suas riquezas. Eles gostam de cozinhar sozinhos porque sabem que quem parte e reparte é que escolhe a sua parte. Nem nos ouvem. Mas deviam, ao menos, saber que ninguém gosta de passar por parvo, muito menos quem o é, e deviam arranjar formas mais subtis de tornar os seres humanos obsoletos. E, mesmo que concordasse com o conteúdo do tratado, que há quem concorde, vá-se lá saber porquê, mas podem fazê-lo, é direito deles pensar pelas suas cabeças, se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém, esta falta de cuidado bastaria para que me opusesse.

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