2007-06-06

G8 - Relato pessoal dos confrontos de 2 de Junho

O que era para ser apenas uma marcha conjunta (a primeira), pacífica, de todas as pessoas presentes até ao momento em Rostock e arredores, depressa se tornou numa batalha campal.

O ponto de encontro era a estação de comboios central de Rostock. Era já nossa conhecida a dificuldade de protesto por ausência de espaços suficientes para o fazer. Os que existem não são suficientemente grandes para conter os milhares de pessoas que querem protestar contra a aberração G8 (esperteza da polícia ou, pelo menos, de quem organizou a defesa neste G8), os acampamentos estão limitados a um número ridículo de pessoas, tendo em conta as muitas mais que ainda vêm a caminho, e os espaços que podem conter manifestações, protestos e afins são propriedade privada.

Voltando à nossa primeira marcha: (por volta das 14h00, vide timeline)

As multidões, única forma de descrever a quantidade de gente que se ia reunindo na estação, iam-se acumulando cada vez mais, e em breve éramos tantos que o tamanho da manifestação era já de perder de vista. Estavam pessoas à espera já no ponto de encontro, do outro lado da estação, a sair da mesma a passo de caracol - demasiada gente para um espaço tao apertado. Enquanto as pessoas chegavam iam discursando, num palco montado para o efeito, elementos de diversas organizações (ex: Via Campesina). Os discursos em português, italiano, espanhol e inglês eram traduzidos para alemão, e os discursos em alemão traduzidos para inglês.

A polícia estava presente, claro. Característica da polícia neste G8: presença absoluta e com a vontade de ser ameaçadora.
Desde a nossa chegada a Rostock no primeiro dia até agora, o esforço dos "nossos amigos" foi de intimidar. Talvez tenha sido a sua grande vitória, pelo menos nos primeiros dias.

Os helicópteros que sobrevoavam (e sobrevoam - tudo isto esta a acontecer) os acampamentos estavam agora por cima do nosso ponto de encontro: dois parados no ar, a fazer sabe-se lá o quê. A sua presença do início, embora um tanto ou quanto estranha ou mesmo, para alguns, ameaçadora, era agora para quase todos pouco mais do que um aborrecimento, ou mesmo um evento indiferente.
Segundo alguns manifestantes a bófia estava a tentar passar a imagem de omnipresença, quando o que está a conseguir é passar uma outra - de impotência. Impotência quando nos juntamos e dizemos "não" à policia e à sua suposta autoridade.

De notar que, de início, nos acampamentos, havíamos sentido uma certa desconfiança entre as pessoas que nele habitavam, mas agora, aqui, no meio do protesto, reinava um clima de felicidade e de força na união de tantas vontades e de tantas opiniões. Era uma festa - uma festa um tanto ou quanto silenciosa (para aquela ideia que nós temos de festa), mas ainda assim, uma festa.
Esse tanto surpreendeu-nos: mesmo durante os confrontos que se seguiram, nunca houve muito ruído (gritos ou outros...). O comentário de um dos elementos de uma "comitiva" portuguesa expressa isso mesmo: "'tá tudo tão calado!", "até na última manif do 25 de Abril fizemos mais barulho!"

Uma nota: a impossibilidade óbvia de contarmos quantas pessoas estavam presentes torna impossível avançarmos com um número, mas as 25.000 pessoas a que se refere a polícia é um número ridículo. Estariam de facto qualquer coisa mais próxima (para baixo ou para cima) dos 80.000 manifestantes indicados pelo Indymedia.

O nosso grupo foi marchando atraves da cidade e, passado pouco tempo, encontrámos pessoas amigas. O nosso grupo de afinidade passou assim de 4 para 10 pessoas. O nome do nosso grupo é até digno de nota, mas como tudo isto ainda está a acontecer, ... fica para depois.

Fomos avançando no "cortejo" até passarmos a caminhar lado a lado com um (ou mais, difícil dizer) grupo bastante grande - um dos grupos dos tais miúdos vestidos de negro, a que a comunicação social chama "black bloc". A verdade é que um bloc nao é um grupo, mas sim uma táctica utilizada por diversos grupos, o que torna a definição um tanto ou quanto ridícula. De qualquer forma, e para efeitos de situar quem lê, chamaremos a estes grupos mais ou menos organizados de "black bloc". É importante a nossa observação dos eventos tal como eles se desenrolaram, nem que seja para mostrar as mentiras da TV e jornais. Se estamos neste momento a escrever este artigo, isso talvez se deva à existência desses "terríveis black blocs".

Durante toda a marcha, elementos vestidos de negro, com a cara tapada, caminhavam ao lado da marcha, para trás e para diante. Fizeram-no para nossa segurança, para vigiar possíveis ataques da polícia (à paisana ou não).

Nota: o nosso sentimento de insegurança desde que aqui chegámos e inenarrável, mas esse sentimento jamais teve algo a ver com a presença desses miúdos ou de qualquer outro grupo. Foi a polícia em armadura de combate, um pouco por toda a cidade e com os olhos a irradiar ódio, que realmente nos assustou de início. Agora sabemos que o poder deles reside no medo que conseguem incutir em nós - em parte, esta guerra está ganha.

Precisamos de polícia para quê, mesmo?

A dada altura do protesto, tivemos que passar debaixo de um viaduto. A polícia tinha alguns elementos na estrada que passa em cima do viaduto e estava a filmar a manifestação. Até então, a grande maioria das pessoas estava de cara descoberta (sim, mesmo a maior parte dos miúdos do bloc... os únicos que estavam uniformemente de cara tapada eram os exércitos de clowns que desfilavam connosco). A partir desse momento passou a ser visão comum as pessoas de cara tapada com lenços, cachecóis, t-shirts, ... Também nós o fizemos - proibição ou não, não autorizamos que nos filmem.


Nota: é de extrema importância referir que quem liderava o cortejo não eram esses grupos de miúdos vestidos de negro, mas sim um sindicato ou um partido (não conseguimos perceber, e na altura não nos pareceu importante - lição aprendida) cuja cor principal nas bandeiras e t-shirts era o amarelo. A acompanhar esse(s) grande(s) grupo(s) estava um camião que ia passando música, mensagens diversas e mandava fumo e bolhas de sabão para continuar a festa. O bloc estava imediatamente atrás mas a umas boas dezenas de metros da frente deste cortejo.

Ao chegarmos ao porto (14h50), o grupo da frente (aparentemente) decidiu entrar na cidade, subindo uma das ruas perpendiculares à rua do porto onde estávamos. A polícia, que estava presente, claro, ordenou que as pessoas retirassem (embora isto não seja claro: não podemos assegurar que a polícia não tenha pura e simplesmente decidido carregar...). Esse grupo fronteiro continuou a avançar e a polícia carregou em força e à bastonada. A imagem dessa carga policial é visível na capa do jornal alemao Der Tagesspiegel, do dia 3 de Junho de 2007. Aconselhemos a que todos dêem uma vista de olhos a essa imagem do início dos confrontos - tentaremos fazer um scan da mesma o mais brevemente possível. Damos 5 € a quem identificar o terrível black bloc no meio dos confrontos - quem for capaz de ignorar os homens, mulheres e jovens a ser atacados, apenas se defendendo com as suas bandeiras e faixas.

O black bloc não poderia estar com essas pessoas pois estava connosco e em peso, entre 30 e 50 metros de distância do foco do conflito.

A carga policial começou por volta das 15h00 (talvez uns minutos antes) e só nos apercebemos de que de facto havia um ataque da polícia quando as pessoas dentro do camião gritaram aos microfones em alemão, inglês e espanhol que estávamos a ser atacados. Quando chegou a tradução em espanhol já a polícia estava quase em cima de nós.

O bloc (pronto, chamemos-lhe assim) imediatamente formou uma série de correntes, fazendo as pessoas dar os braços entre si - uma barreira para impedir a polícia de avançar, e mesmo os manifestantes que pudessem entrar em pânico (um pânico generalizado poderá ser infinitamente pior que uma carga policial). Eles assumiram a defesa de todos os manifestantes e ficaram entre a polícia e o resto do protesto. Antes dos grupos mais à frente conseguirem retirar vimos uma série de objectos a voar, para além das bandeiras atrás referidas, mas não conseguimos perceber muito bem quais. É de referir que não houve nenhum ataque de pedras até esse momento - ninguém estava a espera do ataque da polícia, ninguém se tinha preparado para uma guerra, o nosso protesto era pacífico. Só a polícia estava preparada, só ela queria o confronto.

Se é confronto que querem...

Quando demos por nós, estavamos junto ao camião. Seríamos entre 30 e 60 pessoas, com elementos do bloc no exterior do nosso círculo para nos defender. Não estávamos preparados para o ataque e assim, a frágil barreira humana facilmente cedeu à carga policial, primeiro do lado esquerdo do camião e em seguida do lado direito, o lado do porto. Nessa altura estávamos à espera de ser presos, ou pelo menos de receber tratamento semelhante aos da frente. Numa tentativa de nos safarmos, tentámos fugir - o bloc não deixou e ainda bem. Em breve estávamos mesmo completamente cercados pela polícia.
Antes que a polícia pensasse sequer no que fazer, os rapazes de negro e outros manifestantes contra-atacaram em força: praticamente sem armas do lado esquerdo e atrás de nós, e do lado direito com o que conseguiam encontrar (tudo o que estava no porto servia).
O ataque deu bom resultado - da direita a polícia retirou de forma mais ou menos ordenada enquanto que os da esquerda limitaram-se a fugir e a formar mais atrás. Essa foi a oportunidade por que esperávamos e fugimos em pequenos grupos para o pé dos restantes manifestantes.

Nota: relembramos mais uma vez: quase nao se viam pedras no ar. Até esse momento, os objectos que eram atirados eram também os primeiros que os manifestantes viam.

Reparámos que nesse momento, mais de metade dos manifestantes estava em fuga, uma parte estava a regressar à frente de combate e uma outra, maioritariamente as tais pessoas de negro, a combater a polícia. É certo, mais que certo que se essas pessoas de negro não estivessem presentes, a polícia ter-se-ia limitado a abusar da lei do bastão, espancando tudo o que visse à frente.

O bloc começou então a partir uma secção do chão e do passeio de uma das ruas e a recolher as pedras e lajes que ficavam soltas. Com essas pedras começou então o seu contra-ataque, desta vez muito mais organizado. Isto foi muito depois da carga policial!

Olhámos para trás e, para nossa felicidade, o grande grupo de manifestantes que havia fugido estava agora a regressar, lentamente mas - estava a regressar.

Nota: a polícia usava a chamada armadura corporal, capacete e bastão. Mais tarde veio a utilizar gás-pimenta e canhões de água, mas tanto quanto sabemos, não fez uso dos conhecidos escudos.

A batalha continuou com diversos avanços e recuos e, sempre que possível, os manifestantes recuavam caminhando ao invés de correr, o que dava coragem a muitos, mostrando que essas pessoas não estavam em pânico. Ainda assim, como era inevitável o pânico existiu e nem sempre foi possível retirar com calma ou de forma controlada. O que queríamos demonstrar era o nosso direito de estar naquele porto, naquela cidade, e retirar o direito à polícia de simplesmente invadir o nosso espaço e amedrontar-nos.

A multidão que regressou para o campo de batalha retribuiu dessa maneira o serviço que o bloc lhe havia prestado: 3000 miúdos vestidos de negro e a atirar pedras nada são quando isolados e perante vários milhares de polícias sedentos de sangue. O mesmo já não se passa quando 50.000 pessoas unidas fazem frente à polícia. A importância de, independentemente de partidos ou de ideais, caminharmos juntos e lutarmos juntos é fundamental.

Em parte (uma parte muito importante) a estratégia dos bófias falhou. O combate acabou por durar algumas horas.
Teremos perdido esta batalha? Teremos ganho?

Se é uma vitória para a polícia impedir-nos de entrarmos na cidade, então sim, perdemos.
Mas...
Se é uma vitoria correr connosco e mostrar quem manda, então ganhámos. Naquele momento foi o povo que mandou e não os robocops de armadura a proteger a cobardia e as armas para bater em quem (aparentemente) não se pode defender. Nós fugimos e regressámos, lutámos e regressámos...
Se é uma vitória terem uma escaramuça rápida - desculpem-nos, mas perderam: durou horas.
Se a intimidação é uma vitória da polícia, então perderam novamente - as pessoas saíram de lá mais fortes.
Aqui torno este artigo um pouco mais pessoal, ao informar que est@ voss@ "repórter" teve que abandonar os combates a meio, já que um dos elementos do nosso grupo de afinidade entrou num acesso de pânico absoluto. Acabei por acompanhar essa pessoa a Berlim, de forma a que ela pudesse voltar para Portugal, mas com a certeza de levantar o maior "sururu" do mundo por terras lusas para o que as pessoas unidas estão a enfrentar neste preciso momento (enquanto escrevo) em Rostock, para fechar essa coisa monstruosa que é o G8.

Nem todos têm que estar na frente do combate a atirar pedras, a filmar, a relatar, a dar assistência médica e apoio legal, a alegrar os espíritos como aquele grupo de soldados-palhaço, que a meio de um dos momentos mais violentos da refrega e quando até o bloc fugia da polícia, avançava alegremente pelo meio da multidão, arrancando sorrisos até aqueles que já não viam esperança para todos os que ali estavam. Há inúmeras formas de lutar, inúmeras formas de mandar abaixo este sistema que para morrer so precisa mesmo que lhe expliquem que ele já está morto, ja cheira a cadáver.

Do nosso grupo para ela - um grande beijo. Dá-lhes o inferno, que nós por aqui também!

Nós somos os Media.
Nós estamos a ganhar.

Passem a palavra - VAMOS FECHAR O G8.

Roubado de CMI Portugal

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