2007-04-17

A tortura na Tchetchénia: A “normalização” do pesadelo

André de Agualva

O Relatório intitulado A Tortura na Tchetchénia: a “normalização” do pesadelo, elaborado pela Federação Internacional das Ligas dos Direitos Humanos (FIDH) e pelo Centro dos Direitos Humanos “Memorial” (CDH “Memorial”), publicado em Novembro de 2006, não pode deixar de nos impressionar e questionar a todos.

Os testemunhos apresentados dão conta das atrocidades que vão sendo cometidas contra as populações civis de aldeias e vilas da Tchetchénia e da Inguchétia, duas repúblicas vizinhas no Cáucaso. Ecos de uma guerra esquecida pelos meios de comunicação social e silenciada por poderosos interesses geoestratégicos, que se dobram à vontade de Putin e do governo russo.

As palavras dum habitante de Grozny, que introduzem o relatório de mais de 100 páginas, são por si só reveladores da situação que se vive em toda a região: «Hoje na Tchetchénia eles não podem fazer mais nada sem a tortura, senão é o fim deles. Todo o sistema está baseado na tortura e na mentira. Na Tchetchénia isto faz­‑se de uma maneira ora primitiva ora profissional.»

O tema central do relatório é o aumento das práticas semi-legais de tortura. A “estabilização” e a “normalização”, anunciadas por Putin e pelas mais altas autoridades, são asseguradas por um sistema de terror assente sobre a tortura. Todos os habitantes partilham desta opinião, mas poucos ousam falar por medo de represálias.

As condições em que se processam os raptos (com utilização de veículos blindados e militares) e as subsequentes torturas durante as detenções ilegais provam, na maior parte dos casos, a participação das forças da Federação Russa e de facções militares pró-federais da Tchetchênia. Só por isso nunca chegam a ser objecto de investigação criminal.

UMA NOVA ESTRATÉGIA
O governo russo e as autoridades militares optaram nos últimos anos por aquilo que é descrito no relatório como a “tchetchenização” do conflito. Esta estratégia passou pela criação de forças da ordem compostas por tchetchenos. Estas estão organizadas em unidades que vão permanentemente mudando de nome e de cadeia hierárquica mas cuja linha de comando acaba invariavelmente nas estruturas centrais das forças da ordem russas.

São grupos que, embora legais, mantêm muitas das características dos “exércitos privados”, nomeadamente a fidelidade ao comandante, e chegam mesmo a rivalizar uns com os outros em lutas de poder internas. As suas acções gozam da maior impunidade apenas porque são apoiadas por Moscovo.

A nova estratégia traz ao governo da Rússia uma dupla vantagem. Por um lado, permite apresentar o conflito como interno e apagar as aspirações à independência da república, por outro, afasta-o das responsabilidades nestes crimes e ameniza as críticas que vem sofrendo por parte da comunidade internacional. Com ela pode agora argumentar que as violações dos direitos humanos não passam de ajustes de contas entre os tchetchenos, ao mesmo tempo que propagandeia que a invasão terminou.

No entanto, a progressiva militarização da sociedade que esta estratégia implica está a gerar uma espiral de violência que parece não ter fim. As populações apanhadas no meio do conflito, por medo de represálias ou para defenderem as famílias, tendem a enfileirar por um ou outro campo, engrossando quer os grupos de resistência armada, quer os das “forças da ordem”. Os métodos da luta antiterrorista levados a cabo desde há sete anos fazem o resto. Tomada de reféns, tortura, raptos com fins políticos, violência incontrolada e impunidade total.

AS DETENÇÕES ILEGAIS E OS DESAPARECIDOS
Um dos métodos repressivos usados pelas forças antiterroristas contra a população consiste em privar indivíduos da sua documentação fazendo com que sejam detidos nos frequentes controlos policiais. Estas forças especiais deslocam-se em veículos sem matrícula e levam as suas vítimas para unidades militares onde são interrogadas e objecto de sevícias exercidas por indivíduos nunca identificados. Nestas circunstâncias, são obtidas confissões e forjados testemunhos usados depois para incriminar outras pessoas. As forças antiterroristas chegam ao ponto de organizar expedições punitivas contra aldeias inteiras, como aconteceu em Borozdinovsakya, semeando a morte e o terror.

Ultimamente, tornaram-se frequentes as detenções por curtos períodos, sendo a pessoa torturada até dar a informação pretendida. Depois é libertada e advertida que, se falar sobre o sucedido ou revelar pormenores do que se passou, numa próxima vez as coisas serão piores. Nem os próprios nem as famílias sabem qual a estrutura responsável pelo rapto. Qualquer queixa ou pedido de informação sobre os desaparecidos feita às autoridades é sistematicamente negado, uma vez que oficialmente nada existe sobre eles. Alguns nunca voltam a aparecer, sendo apenas encontrados os seus corpos com marcas de tortura.

Nos últimos quatro anos, a CDH “Memorial” contabilizou o rapto de 1815 pessoas, das quais 991 permanecem desaparecidas e 184 foram encontradas mortas. Só nos 11 primeiros meses de 2006, a mesma organização contabilizou mais 143 raptos, estando 54 pessoas ainda desaparecidas e tendo sido encontrados 8 corpos com marcas evidentes de tortura e morte violenta.

Estes números reportam-se apenas a uma pequena parte do território onde a organização pode investigar, pelo que os números reais serão muito mais elevados. São números que se tornam ainda mais impressionantes se pensarmos que esta pequena república do Cáucaso conta com pouco mais de 800.000 habitantes.

Como é óbvio, nada disto deixa de ser da responsabilidade do governo russo e das autoridades militares, apenas porque numa operação de cosmética se mudou aparentemente a natureza do conflito.

O ALASTRAR DO CONFLITO
Estas práticas, que tinham estado até agora confinadas ao território da Tchetchénia, ameaçam ser estendidas a outras repúblicas do Cáucaso, sempre com o argumento da luta contra o terrorismo. O relatório descreve pormenorizadamente uma acção levada a cabo por um desses grupos militares em Neterovskaya, na vizinha república da Inguchétia a 31 de Maio de 2006. Um exemplo claro da violação de todas as normas do Direito Internacional.

O ataque à aldeia de Neterovskaya foi da responsabilidade das forças da ordem tchetchenas que se deslocaram em veículos militares e atacaram uma residência com tiros e granadas, acabando por fuzilar um dos homens da casa, Rizvan Khaikharoev. Tratou-se de uma execução sumária em território da Inguchétia levada a cabo por forças da ordem tchetchenas e com o aval do presidente da Tchetchénia que a elogiou publicamente dias depois. Os conflitos fronteiriços com os estados vizinhos têm vindo a aumentar nos últimos tempos. Eles são um sintoma claro da tentativa de estender o conflito a toda a região do Cáucaso.

OCULTAÇÃO E IMPUNIDADE
A lei federal “Sobre a luta contra as actividades extremistas”, adoptada em 2002, classifica como extremista qualquer actividade contra a unidade territorial da Federação Russa. Neste momento, até os organizadores de acções de protesto pacíficas podem ser classificados como extremistas. O referendo e os processos eleitorais na Tchetchénia em 2003, 2004 e 2005 não passaram de farsas orquestradas por Moscovo, segundo afirma o relatório. Os partidários da independência nunca puderam apresentar os seus pontos de vista.

Toda a recolha de informações no território é dificultada pelo clima de medo que se vive entre a população. As provas de tortura são difíceis de obter directamente porque o governo russo não permite o acesso aos centros de detenção, nem mesmo a inspectores com mandado internacional. As ONG’s que se interessam por estas questões são hoje activamente perseguidas e incomodadas pelo governo russo.

Mesmo o inspector das Nações Unidas M. Kowak, encarregado de elaborar um relatório a apresentar à Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, não obteve permissão para visitar os centros de detenção quando se deslocou à região em Outubro de 2006. O acesso de organizações como a Cruz Vermelha Internacional aos prisioneiros do regime está proibido desde o caso da Escola de Beslan.

Uma declaração citada pelo relatório e assinada por 15 organizações de defesa dos Direitos Humanos russas e internacionais publicada em Julho de 2006 refere milhares de vítimas de tortura, de desaparição forçada e de detenção em locais secretos que permanecem abandonadas à sua triste sorte.

O relatório, de que este pequeno artigo pretende dar conta, traz-nos uma explicação detalha e exaustiva de toda a situação vivida no Cáucaso. Apresenta numerosos testemunhos sobre o uso da tortura na obtenção de confissões. Denuncia as desaparições forçadas, a tomada de reféns e a existência de locais de detenção ilegais. A impunidade das estruturas antiterroristas e os seus métodos brutais são também detalhadamente analisados e documentados.

O relatório pode ser lido no site da Federação das Ligas dos Direitos Humanos

Etiquetas: