2007-02-18

O Mediterrâneo como Segregação

de Adrian Grima

Texto original em (inglês) aqui

Mais de uma centena de activistas da sociedade civil de todo o Mediterrâneo encontraram-se em Roma, para renovarem o seu comprometimento contra a guerra e o colonialismo e para discutir formas de trabalhar em prol da paz, democracia, direitos humanos e civis, coexistência pacífica e liberdade. Adrian Grima esteve lá.

Defino-me como um tunisino, árabe, muçulmano e migrante. Também há um outro elemento muito importante na constituição da minha identidade, que é a minha posição clara, em termos de grupo social ou classe, a favor das pessoas oprimidas. Esta estranha mistura (“intreccio” foi a palavra que utilizou em italiano) de elementos faz de mim o que sou, não penas na forma de ideal, porque também determina, precisa e concretamente, a minha praxis individual e política, a minha forma de pensar, a minha forma de agir. Nesta mistura que me constitui, o Mediterrâneo não está presente. Na minha identidade não sinto que pertença ao Mediterrâneo”.

É demasiado tarde numa linda sexta-feira à noite em Roma. Omeyya Seddik, do Mouvement de l’Immigration et des Banlieues, uma federação de 50 comités dos subúrbios de Paris, fala com a claridade descomprometida e a paixão dum activista da sociedade civil experiente. Explica que é um tunisino que vive em França e, como tunisino, ele é parte duma coligação de partidos, associações e figuras de proa que se opõem ao regime do presidente tunisino, General Ben Ali. Omeyya Seddik é um membro do comité formado por emigrantes que é parte deste movimento pela democracia na Tunísia, que se chama Mouvement du 18 octobre.

Ele afirma que para ele, e para os árabes em geral, a questão não é “O que é o Mediterrâneo?”, mas antes “Porque é que o Mediterrâneo não está presente?”

Tomar partido

Para as pessoas às quais eu sinto que pertenço, o Mediterrâneo é algo que divide. É um mar onde os nossos irmãos e irmãs morrem todos os dias, porque há uma relação colonial que existe há muito tempo e que está a ficar mais forte. O nome desta relação é “o Mediterrâneo”. Omeyya descreve este mar como uma “segregação espacial”. Vocês”, diz-nos a nós, europeus, “podem visitar-nos quando querem. Nós não podemos. Isto impede o Mediterrâneo de ser alguma coisa clara”.

Raffaella Bolini, presidente da ARCI, uma das organizações que organizou o Medlink, acredita que temos que articular melhor uma posição anti-neoliberal e anti-guerra e que criar uma linguagem universal. Ela acredita que o lugar para este tipo de encontro e diálogo, para esta articulação, é o Mediterrâneo, “a possível fronteira do conflito de civilizações”, um local onde há uma necessidade urgente de uma alternativa. Raffaella sabe que “muitos dos nossos amigos da costa sul contestam a nossa retórica sobre o Mediterrâneo como um mar de paz. Para eles, o Mediterrâneo é uma fronteira entre poderes colonizadores e colonizados, o cemitério dos jovens do Sul”. Ele augurou, talvez até tenha prometido, que, no Medlink, os activistas da sociedade civil iriam inventar, criar um mar comum (1).

Omeyya viajou para Roma a partir de Beirute, onde tinha estado “a tentar construir solidariedade com o povo libanês e com a resistência”, desde o início da última guerra israelita no Líbano, em Agosto de 2006. Numa voz firme que está talvez carregada de emoção ele identifica outro obstáculo. “O Mediterrâneo é um lugar onde existe um enorme problema. Chamo-lhe Estado de Israel. Muitos árabes não confiam no conceito de 'Mediterrâneo', porque acreditam que falar sobre o Mediterrâneo é uma forma de fazer de conta que o antagonismo não existe”.

Descreve Israel como “um estado que nunca parou de fazer guerras, que não paro de destruir sistematicamente um povo, nunca. Todas as forças políticas que estiveram no poder fizeram a mesma coisa. Nunca parou de fazer guerras em todo o lado. Experimentei isto eu próprio quando eles bombardearam a Tunísia e o Líbano. Este é um dos elementos constitutivos deste estado. Falo com experiência. Não quero falar de legitimidade histórica. Peço perdão aos palestinianos. Não quero falar sobre de quem é este país. (..) Só quero falar sobre o que este estado tem vindo a fazer há décadas. E sobre oque continua a fazer. E este estado, tenho pena de o dizer, não faz parte do Mediterrâneo. É um obstáculo ao Mediterrâneo. Se não dissermos isto, não podemos criar o Mediterrâneo”.

Omeyya explica que para ele, tornar claro de que lado estás é vital. Refere-se ao discurso de Raffaella Bolini no Medlink e ao seu artigo no diário nacional comunista Liberazione. Raffaella escreve que sentimos a necessidade de construir uma rede de pessoas, o que ela chama “un gruppo di affinità” de entre aqueles que recusam a alógica de tomar partido, “la logica di schieramento”. É o tipo de oposição binária que pretende, ou que até te força, que escolhas entre Bush e Bin Laden, entre a Ocupação da Palestina e bombistas suicidas. Ela chama a este antigo fenómeno “a lógica do inimigo”, que está pressente em todo o lado, mesmo na esquerda e em certos movimentos.

Omeyya realça que compreende perfeitamente o que Raffaella Bolini diz. “Entendo a dor da pessoa que é forçada a escolher entre terrorismo e os Estados Unidos. Entendo isto. Mas, se formos um bocadinho mais ao fundo, as coisas são mais complicadas. Para trabalharem em conjunto, as pessoas têm que estabelecer de que lado estão”. Os árabes sentem “que vivem em guerra permanente. Não se trata de escolher entre viver em paz ou estar em guerra. Trata-se de que estamos em guerra. E, quando há guerra, temos que fazer qualquer coisa. Temos que tomar partido”.

Não estou a praticar terrorismo intelectual. Na primeira guerra mundial havia dois lados em guerra e alguns pacifistas recusaram-se a combater nesta guerra. Foi uma coisa bonita. Eles diziam 'Nós não queremos esta guerra'. Espero que, se tivesse vivido nessa época, durante a guerra, me tivesse sido possível fazer a mesma escolha. Mas a guerra que vivemos hoje é uma guerra colonial, na qual temos que escolher, na qual temos que tomar partido. Numa guerra como esta há um inimigo e há um amigo”. Omeyya realça que “Os nossos povos não conseguem entender uma aliança”, e aqui ele refere-se à Europa, ou mais especificamente à União Europeia, “que há um inimigo que faz guerra contra os nossos povos”, ou seja, contra os árabes.

Como pode um libanês ser parte duma aliança na qual tenha que trabalhar com pessoas que estão associadas, ou muito próximas, a forças que são aliadas dos EUA no Líbano, depois de ter “recebido milhares de toneladas de bombas e vivido uma guerra”? Como é que se pode discutir alianças e cooperação com pessoas que são aliadas e que trabalham com aqueles que atacaram o Líbano e o seu povo?

Omeyya Seddik dá outro exemplo. “Quando houve uma rebelião, há algum tempo, na Argélia, na região de Kabylia (maioritariamente Berbere), depois do assassinato dum adolescente chamado Massinissa Guermah (em 2001), fui a Kabylia para entregar uma declaração escrita por muitos intelectuais árabes de apoio à revolta. Definiam-se intencionalmente como árabes para estabelecer que não consideravam que isto fosse uma guerra entre árabes e berberes. Consideravam que se tratava duma revolta justa, uma revolta social contra um estado que nega os direitos das pessoas. E, de facto, esta revolta não sedava apenas em Kabylia mas também em muitas aldeias e cidades exteriores à área berbere. Ninguém falou disto.”

Mas quando esteve lá, Omeyya teve “problemas enormes com dois discursos que eram de facto o mesmo discurso: o primeiro discurso era o do Estado, do exército dentro do Estado que disse que a revolta era étnica, uma revolta berbere que ameaçava o Estado e a unidade da Argélia”. O outro discurso que não podia aceitar era “um discurso berbere étnico e chauvinista de alguns dos grupos sociais e políticos representativos de Kabylia que diziam exactamente a mesma coisa.” Queriam, a todo o custo, transformar uma causa justa num conflito étnico. Eu posiciono-me a favor dos direitos das pessoas decidirem como falar, que linguagem utilizar, o direito de lutar contra a injustiça; mas também tomo partdo contra todos os discursos que dividem as pessoas e que criam atritos sociais entre elas, transformando tudo em conflitos religiosos e étnicos.”

Vou dar-vos outro exemplo, desta vez relacionado coma Tunísia. Não culpo os organizadores do Medlink, mas como posso eu falar acerca de alianças e cooperação quando tenho que falar para uma audiência que também inclui porta-vozes do regime de Ben Ali?”

E como posso eu não tomar partido no Iraque e na Palestina? Podem dizer que, para mim, isto é uma escolha estético ou espiritual. Ou o que lhe quiserem chamar. Para mim, resistir à injustiça é uma cosa sagrada. Mas nem todas as formas de resistência em diferentes partes do mundo são sagradas. Há erros que se cometem. Eu estou do lado da resistência e tomar essa posição é a condição para se poder trabalhar em como resistir. Em primeiro lugar temos que tomar partido pelos que estão a resistir à injustiça, ao colonialismo e à ocupação: esse é o primeiro passo, sem o qual não poderemos cooperar de forma a tornar a resistência mais eficaz e mais próxima da nossa visão de igualdade e por aí fora.

Omeyya reconhece que, claro, não é fácil tomar partido, porque as coisas não são simples e transparentes, mas alguém que se envolve em política ou activismo social deve fazer o esforço de ver o que se está a passar. “No Líbano as coisas estão difíceis. No Iraque as coisas também estão difíceis. Mas no Iraque há resistência, mesmo se há coisas que são difíceis de compreender. O nosso dever é ir e ver e compreender o que se está a passar, de forma a podermos tomar posição”.

Um Locus de Diálogo e Acção

Outra oradora árabe que foi crítico a toda a noção de Mediterrâneo como um Locus de diálogo e acção para a sociedade civil foi Nahla Chahal, uma socióloga libanesa e professora universitário que vive, neste momento, em Paris e que estava a representar a Campagne Civile Internationale pour la Protection du Peuple Palestinien. A experiência da guerra no Líbano, no Verão de 2006, ainda estava muito viva no seu coração e na sua mente.

Para os árabes, afirmou, o Mediterrâneo existe como “um espaço geográfico, não um espaço político”. Por outro lado, os árabes esperam muito da Europa, mas, ao mesmo, tempo, suspeitam muito dos seus motivos. Isto é claro na interpretação que fazem do conceito duma região ou dum processo político “Euromed”. “Para os árabes, 'Euro' e 'Mediterrâneo' são termos coloniais. Dum lado, há a Europa e, do outro, o mundo árabe, há o Mediterrâneo. O que é esta construção híbrida que não significa nada?”, pergunta Nahla Chahal. “São Euro Árabes ou Euro outra coisa qualquer ou Mediterrâneo, mas o que é Euromediterrâneo, o que é em termos de conceito ou vontade? Nós, europeus, somos europeus e, mais uma vez, orientamo-nos para outra esfera, o Mediterrâneo, e vocês, mais uma vez, não existem.

Mesmo com a terminologia é preciso ter muito cuidado, porque os árabes esperam muito da Europa, é a entidade mais próxima deles, com a qual têm muitas ligações históricas e culturais. Mas também porque a Europa é uma força muito importante no que diz respeito à hegemonia americana”. Nahla Chahal disse que “os árabes perguntam-se o que está a Europa a fazer quando a agressão acontece”, como aconteceu no Líbano, ou “quando a situação na Palestina é particularmente má?” Quando a Europa não faz nada, os árabes recordas as suas memórias negativas da Europa como colonialista, mais próxima dos EUA dos que do mundo árabe; “até mesmo as memórias das cruzadas são lembradas”. Os árabes esperam que os europeus ajam “e, quando não fazem, quando estão ausentes, ou quando actuam da forma errada, isto cria problemas muito grandes.

(...)

MEDITERRANEAN LINKS (MEDLINK) – Um encontro de Sociedades Civis do Mediterrâneo para a Paz, Justiça, Direito, Democracia, decorreu em Roa a 24/25/6 de Novembro de 2006. Foi organizado por um grupo de organizações e redes da sociedade civil italiana. Un ponte per…, Arci, Attac-Italia, Beati i costruttori di pace, Guerre&pace, Fiom-CGIL, ICS, Libera, Lunaria, and Rete del Nuovo Municipio.

(1) Raffaella Bolini, “L’alternativa all’odio tutta da costruire. Mediterraneo e movimenti tra l’incudine e il martello,” Liberazione (23 November 2006). http://www.liberazione.it/giornale/061123/archdef.asp.


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